20 março, 2007














O actor habita e é feliz nas tuas geniais palavras.
Palmas Herberto. Palmas!
DV

O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.

Herberto Helder, O actor

01 março, 2007













Faço minhas as palavras do Pedro. Vale a pena ler.

Educação Artística em Portugal

A propósito da andança que António Barreto fez pelo país para a realização
de um documentário para televisão, perguntava-se-lhe no P2
do PÚBLICO deste domingo, 25 de Fevereiro: “Veio mais português?
(AB) Não.
(P2) Responde assim, tão seco e tão duro?
(AB) O que é que seria preciso para me sentir mais português?
Maior identificação com os meus conterrâneos.
Que eles fossem mais cultos, menos complacentes, mais pontuais. Gostava
que tivessem educação artística (é o país com menos educação artística da
Europa).”
Portugal é, então e também, o país com menos educação artística da
Europa e, apesar da assertividade de António Barreto, pouca atenção
se dará ao significado desta observação. Até nos podem tentar
convencer do contrário, porque pode verificar-se: as artes têm lugar
nos programas escolares! Mas a bondade do que vem nesses programas
apenas faz parecer que sim. Pelo contrário, e conforme vê António
Barreto: não. O que acontece nas escolas – como
sempre – não se sabe e não se quer avaliar. Depois, parece observar-se
esta questão, na ignorância de que muito pouco (ou nada), garante a
qualidade da formação dos docentes nesta área: as Escolas (Superiores)
de Arte e as Escolas Superiores de Educação não souberam (ou não
quiseram saber), umas, formar a docência e, outras, formar docentes
com o mínimo entendimento das manifestações artísticas.
Votadas as Artes à incompreensão, alimentada por discursos historicamente
mal orientados, ou ao serviço dos diversos interesses mediáticos
e comerciais, de pouco valerá em Portugal, referir, por exemplo, como
um maior (mas, sobretudo, melhor) convívio com as expressões e valores
artísticos durante os tempos de educação resultam – com vantagens
sobre outras fórmulas pedagógicas – numa mais profunda sustentação
civilizacional. Também, na ausência de experiências significativas, permanecerão
incompreensíveis e inúteis as tentativas de explicação de
que o tipo de sensibilidade ao mundo e seus fenómenos, bem como a
qualidade dos raciocínios que a Arte promove, comparticipam fortemente
na formação de capacidades criativas. Sem estas capacidades não
surge a tão (política e economicamente) almejada inovação.
Se não fosse o facto de, por um lado, ser ignorada a importância
humana e cívica desta matéria e, por outro lado, aceitarmos (dóceis
como sempre) o convencimento de que as Artes “já” fazem parte
do currículo escolar, esta teria sido uma questão central no debate sobre
um verdadeiro e transformador “enriquecimento curricular”. Não o
é, e dificilmente o será.

Pedro Partidário
Lisboa, in Público 01/03/07